01/10/2019
Cuidar da Cidade: nossa casa comum, esse é o objetivo e também o nome de um projeto do Complexo Cooperativo de Reciclagem da Bahia (CCRBA) – rede que agrega 7 empreendimentos em Salvador e Camaçari. O problema é que enquanto os catadores cuidam da cidade, a cidade não cuida de seus catadores. As cooperativas têm atuado na raça, coletando resíduo que seria descartado na natureza, aumentando a vida útil dos aterros sanitários e movimentando dinheiro na cadeia produtiva da reciclagem que, sem eles, seria literalmente jogado fora. São serviços essenciais ao saneamento da cidade, no entanto esses trabalhadores continuam precarizados, sem remuneração digna e condições de trabalho adequadas.
Para continuar na busca por esses direitos, a CCRBA foi uma das contemplados pelo edital Casa Cidades na Região Metropolitana de Salvador e conta com financiamento do Fundo Socioambiental Casa, com apoio do Fundo Socioambiental Caixa e da Fundação OAK e articulação local do Gambá. O projeto prevê apoio para a agenda de busca de consolidação dos direitos dos catadores junto aos poderes públicos municipal, estadual e federal e em articulação com o Ministério Público, além de uma campanha de comunicação que busca valorizar o trabalho dos seus cooperados.
O plano inicial era fazer uma notícia para divulgar o projeto. No entanto, a conversa que tivemos com a equipe do CCRBA foi tão rica que achamos por bem veiculá-la integralmente, dando voz a esses trabalhadores fundamentais para o saneamento da cidade e que demonstram força e organização na luta por seus direitos. A conversa foi realizada na sede de uma das cooperativas associadas ao CCRBA e envolveu a responsável pelo projeto e cooperada da Camapet, Michele Almeida , o assessor do Centro de Arte e Meio Ambiente, Joilson Santana e os catadores Alexsandro Campos, da Camapet; Aderlinda Bastos Santana e Elias Pires, da Coopers e Heroína de Jesus Santos, da Associação de Agentes Ambientais e Catadores de Resíduos Sólidos do Nordeste de Amaralina.
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Como está acontecendo a coleta seletiva em Salvador? Os Pontos de Entrega Voluntária de material reciclável (PEVs) têm tido impacto positivo nas cooperativas de catadores?
Michele
Quando os PEVs foram instalados, em 2010, a Secretaria da Cidade Sustentável chamou as cooperativas para apresentar como seria a coleta e nós trouxemos nosso ponto de vista, com a experiência de muitos anos trabalhando com a coleta dos resíduos sólidos. A primeira questão que colocamos foi a estrutura. Ela não é adequada porque é um buraco só e mistura todo o material. A segunda foi a educação ambiental, porque infelizmente nossa cultura não é de separar o material e o pessoal precisava ser informado para fazer isso. Para onde vai, quem vai receber, o que vai acontecer depois disso. O catador precisava estar na rua conversando com a comunidade, ver se o material estava sendo entregue corretamente lá. Outra questão é que a cooperativa que vai receber, vai separar e deve cobrar o peso para fazer isso. Mas nada disso que falamos aconteceu.
Joilson
Foi uma iniciativa do município, eles chamaram várias cooperativas e a gente deu a contribuição de como esse equipamento poderia ajudar a cidade e as cooperativas. Eu brinco que nós fomos ouvidos e não escutados.
Alexsandro
O que nós propusemos ao município não foi os PEVs e sim o ecoponto assistido, com outras ferramentas, com a educação ambiental sendo trabalhada através do catador. Mas esse modelo foi imposto.
Aderlinda
Mas esse PEV tá dando retorno para as cooperativas
Alexsandro
Na verdade eles chamaram as cooperativas só pra cumprir tabela, né?
Michele
Eles colocaram da forma que eles acham ideal e para nós é impactante. Tem exemplo da cooperativa Canore, eu perguntei como está lá a situação e dizem que virou lixão. Porque a caçamba pega nos PEVs e despeja na cooperativa da forma que encontram lá. Quando os cooperados vão fazer a triagem vêem que tem muito mais rejeito do que reciclável. Chegou até cachorro morto lá. Aí tem outra problemática: a cooperativa informou a Secis e a Limpurb que precisava ir lá retirar o rejeito – como foi combinado. Passaram-se mais de 6 meses com esse rejeito lá, só entregando do PEV. Foi acumulando e causou tumulto na comunidade. Depois de mais de 6 meses a Limpurb foi lá retirar, depois de muita briga. O PEV como está hoje é um transtorno. Porque o pessoal não sabe para o quê é aquilo, acha que é mais um coletor de lixo comum.
Alexsandro
No fundo é muito marketing. O que chega muito no PEV é o vidro que não tem destinação aqui no estado, embora tenhamos buscado. Não foi buscado um diagnóstico das cooperativas para atender a demanda, no que o município poderia apoiar para que isso fosse feito. Só pensou no marketing, em dizer que tá fazendo. Muitas cooperativas acabaram virando unidade de aterro, porque ia rejeito mesmo, lixo.
Joilson
E vale ressaltar que quando fomos chamados apresentamos um pacote completo, com a estrutura, metodologia, logística que deveria ser utilizada, com os empreendimentos sendo parceiros nesse projeto. Apresentamos um método de divisão dos PEVs, por regiões administrativas – que depois viraram prefeitura bairro – direcionando para cada cooperativa da área. Porque a ideia era que a cooperativa fizesse a coleta e que isso fosse remunerado também. Então era um serviço fechado, todo o ciclo em parceria com os catadores.
Elias
Quando comparamos uma cidade como Salvador, primeira capital do Brasil, com outras menos importantes, vemos que algumas já têm o reconhecimento desses trabalhadores. Quando se fala em resíduo sólido, tem muitas coisas envolvidas: mão de obra, preservação ambiental, o destino final dos resíduos. Não entendemos como uma cidade do tamanho de Salvador não liga para isso. Ainda mais em uma época de grande desemprego para pessoas sem acesso à qualificação. Geralmente a maior parte dos catadores não tiveram uma oportunidade de se qualificarem profissionalmente. Mas não é porque você não é advogado, juiz ou jornalista que você não precisa trabalhar. Nós criamos todo um aparato, galpão, máquinas e pedimos para o governo ajudar somente a ampliar, melhorar, mas não vai. A gente tem que ser responsável por tudo, enquanto é o poder público que deveria estar cumprindo a lei de resíduos sólidos.
Joilson
Todas as 4 vertentes do saneamento básico estão relacionadas ao trabalho dos catadores. Quando você pensa na drenagem, no saneamento, no esgoto e na própria coleta, o trabalho dos catadores impacta em tudo isso. Quando vemos as ruas de Salvador inundando, boa parte tem a ver com descarte incorreto de resíduo. Só não está pior porque homens e mulheres passaram ali antes recolhendo matéria prima – que poderia estar melhor disposta, mas não está porque a cidade não é planejada, induzida, orientada e provocada a ter essa mudança de comportamento de forma sistemática. Hoje já temos educação ambiental nas escolas e nossos pequenos já começam a ter esse tipo de conhecimento. A gente não viu isso na nossa época, nossos pais menos ainda. Já é algo importante, mas temos que ser “mais agressivos” com essas iniciativas que aumentam nossa qualidade de vida.
Ações como essa do Fundo Casa, apoiando nosso projeto “Cuidar da Cidade: Nossa Casa Comum”, têm garantido um fôlego a esses empreendimentos e esses trabalhadores para que eles se mantenham na luta, oxigenados. Elias brinca muito que se não tivermos garantida a possibilidade de ir e vir, a gente não consegue nem gritar o que a gente precisa. Então o projeto tem garantido essa circulação e nos mantido dentro da agenda, porque não é fácil. O deslocamento na cidade, ir e vir, hoje em dia já está custando 8 reais. É difícil se manter em uma agenda de luta se você não tem esse suporte. O projeto tem o objetivo de manter esses homens e mulheres acesos, não deixar que eles adormeçam e continuar sua luta na defesa desses direitos, certo? Temos lutado bastante, temos tido alguns êxitos, mas também muitos desafios. Falamos de dois deles: o carnaval e o festival da virada. São dois momentos de muita geração de resíduo
Como está a situação da logística reversa?
Joilson
A política nacional de resíduos sólidos prevê investimento das empresas para garantir que sua matéria prima retorne para a produção de um novo ou do mesmo produto. Há mais ou menos uns 5 anos houve avanço para construção de um acordo setorial das embalagens em geral – com governo, empresas e os interessados. Existem alguns outros setores como lâmpada, pneus, embalagens de óleos lubrificantes que já tinham avançado – e o de embalagem estava meio emperrado, mas fechou. Foi um grande avanço e teve participação dos trabalhadores a nível nacional. Esse acordo garantiu a participação dos catadores para a implantação da logística reversa no Brasil em relação a embalagens em geral. E o movimento nacional dos catadores por meio da Associação Nacional dos Catadores (ANCAT) tem uma parceria com algumas empresas geradoras dessas embalagens. A implementação da logística tem sido feita através de projetos e aqui na Bahia algumas cooperativas, inclusive do nosso complexo, já foram contempladas.
Mas entendemos que além do nível federal, também devemos fazer o mesmo a nível regional, estadual e municipal. Porque nem sempre aquilo que foi acordado nacionalmente consegue chegar nos quase 5 mil municípios do Brasil. É muito difícil. Então o acordo nacional pode ser uma diretriz para que estados e municípios também possam desenvolver seus acordos. O Paraná tem seu acordo estadual, o governo chamou as empresas para também criar um acordo a nível local. Por que isso? Porque nem sempre a embalagem A está circulando no estado B, C, D. Precisa pegar a realidade local para discutir com os atores no estado.
E em que ponto está essa discussão aqui na Bahia?
Joilson
Aqui ainda não temos a implementação do que chamamos de Plano Estadual de Resíduos Sólidos e também não temos o decreto que regulamenta a Política Estadual de Resíduos Sólidos. A política foi aprovada em 2014, era para ser regulamentada em até 180 dias e até hoje não foi. Existe um diálogo com o Governo do Estado por meio da Secretaria de Meio Ambiente e da Secretaria de Desenvolvimento Urbano para garantir que essa etapa seja cumprida conforme um cronograma extremamente atrasado. Estamos dialogando também com o Ministério Público para que haja pressão para regulamentar.
Porque é importante regulamentar? Porque é ali que há a delimitação de cada etapa e como ela será cumprida. É ali que você refina e aponta caminhos para implementar a política. Você tem a política no nível macro, mas precisa que ela se materialize, precisa de um Plano Estadual de Resíduos Sólidos, dos acordos setoriais, do Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos. Então tem uma série de ações que podem ser garantidas através dessa lei.
Tivemos um grande avanço no carnaval. Claro que ali é um evento e pensamos que a logística reversa deve acontecer os 365 dias do ano. Não podemos deixar que os 365 dias adormeçam, mas, no estágio que nos encontrávamos, os grandes eventos eram um bom exercício para começar a construir esses acordos setoriais para logística reversa.
Aconteceu nos últimos 2 carnavais. Houve 2 termos de compromisso com a empresa que gera resíduo durante o carnaval. Aqui foi a AMBEV, porque é ela que comercializa no carnaval. Várias cooperativas participaram e o investimento da AMBEV foi de 400 mil esse ano e 70 mil no ano anterior. Claro que nós achamos que tem que ser mais, mas na mesa de negociação chegou-se a isso e foi um avanço significativo. Cada rede teve um certo investimento e apresentou as ações e a forma que seriam desenvolvidas – nós implementamos o pagamento para o catador avulso que já está na rua. O projeto EcoFolia Solidária – Trabalho decente preserva o meio ambiente tentou fazer com que ele seja visibilizado, reconhecido, respeitado e tenha uma oferta mínima de condições de trabalho. Então ele vai até essa central de apoio ao catador e recebe um suporte, EPI, fardamento e alimentação, além de uma melhor valorização do material que ele tá coletando. Sem isso ele fica ao deus-dará.
Alexsandro
Nós pagamos R$3,50 no alumínio – o atravessador costuma pagar uns R$2,50. Foram cerca de 450 catadores que participaram do projeto.
Falando sobre as condições de trabalho, vocês enxergam uma tendência da cidade perder esse serviço em momentos em que a economia e empregabilidade melhora, já que a categoria não é suficientemente valorizada? Existe uma migração desses trabalhadores para outros serviços quando há mais oportunidades?
Joilson
Isso é cíclico, mas já temos algumas variáveis muito fortes. A exemplo de 2008, quando houve uma crise no mundo todo. Aqui não tivemos grandes impactos no trabalho dos catadores pq tivemos programas, principalmente na esfera do governo federal, que deram muito suporte para os empreendimentos e eles seguraram a onda. Mas o preço dos resíduos despencou, por causa da dólar. Então muitos empreendimentos passaram por gigantescas dificuldades e conseguiram se manter devido a programas que deram subsídio e suporte. Se não fosse isso, com a crise que se abateu muitos empreendimentos não estariam nas ruas fazendo a coleta. Quando você chama a atenção de que o momento econômico pode mexer com a quantidade de trabalhadores que faz a coleta, é verdade. Mas esse número não zera. Porque já tem muitos trabalhadores que optaram e continuam optando por essa atividade como geração de trabalho e renda. Não se vêem mais fora dessa atividade. Há 16 anos tem sido aplicado um questionário junto a esses trabalhadores durante o carnaval e uma das questões é se a atividade de catação era uma opção ou uma condição atual. Seria a primeira opção ou uma segunda opção? E esse levantamento diz que muitas vezes a catação já é a atividade principal de geração de renda.
Aderlinda
E se não fosse a catação que a gente faz na rua, Salvador não existia mais. Já tinha ido embora nas enxurradas. Imagine os esgotos cheios de geladeira, sofá, garrafa e latinha. Imagine?
Joilson
Tem gente que vai se mexer e mudar, assim como qualquer outro profissional. Mas não zera essa cadeia que é muito importante para a economia nacional. Mesmo o Brasil perdendo anualmente quase que 8 bilhões de reais por falta de reciclagem, ainda assim essa categoria tem contribuído significativamente para a cadeia econômica da reciclagem. A exemplo da latinha de alumínio, das garrafas PET, do papel e do papelão. Os outros resíduos, não temos contribuído mais porque falta ferramentas e estrutura. Por exemplo, os empreendimentos que deixaram de coletar o vidro, não é porque não querem e sim porque têm dificuldade de infraestrutura e também de mercado. As duas pontas com defeito e aí você para com a atividade completamente.
Elias
Falando sobre essa questão dos catadores trabalharem porque gostam, porque amam o trabalho. Eu acho que é como um trabalho qualquer. Você não precisa amar o seu trabalho, nem se apaixonar – você deve gostar. Pode ser que eu seja um advogado formado e depois não quero mais ser advogado, quero ser político. Tanta gente faz isso. Eu como catador também posso, mas o que eu quero é respeito, ganhar dinheiro e ser considerado sem discriminação. O que interessa é isso.
Heroína
Eu fui para a reciclagem em 2003 porque naquela época passava necessidade, com três filhos nas costas. Mas eu trabalho com tudo, com reciclagem, faço meus doces, meus salgados…Se eu não quiser mais viver do lixo, porque aqui em Salvador ninguém dá valor pra ele e no Rio ou em São Paulo os catadores têm sua bolsa reciclagem direitinho. Aqui na Bahia que é mais devagar. Mas se de repente me der um revertério na cabeça e pegar meu carro que eu uso para reciclagem para vender meus doces e salgados, fazer tipo uma barraquinha, eu vou me embora. Eu não faço uma coisa só não.
Alexsandro
Concordo em parte que a tendência é os trabalhadores saírem da rua. A gente já viveu isso de tempo ruim em que havia muita rotatividade nas cooperativas, que migravam para a construção civil ou serviços gerais por várias questões como necessidade e falta de formação. Mas hoje nós temos um segmento que tem buscado profissionalismo e qualificação porque entendem que aprenderam a fazer. Então hoje existem catadores que optam por buscar mesmo esses direitos e esses ideais porque eles já são capacitados e sabem gerenciar seus negócios. Então a economia ganhando força, claro que terá uma margem que migra para outras atividades, mas talvez a grande maioria continuará buscando o direito de verdade.